domingo, 6 de maio de 2012

O violino





Era uma tarde de Outono e eu atravessava o jardim, cansada, numa tentativa de encurtar o caminho a percorrer.
Quando vi o banco ali ao lado sentei-me. Estava ocupado mas pretendia parar apenas um pouco. Na outra ponta, um homem que podia passar despercebido, de idade indefinida, era a figura representativa da solidão: ligeiramente curvado, olhos postos no canteiro desinteressante em frente, mãos no vazio, cruzadas uma na outra e cotovelos pousados nos joelhos, parecia estar a posar para um escultor de cansaços?
Quando me sentei virou os olhos para mim, fez um aceno e continuou como se não me visse. E penso que assim teria continuado se não tivesse passado por acaso uma mulher com uma criança pela mão que transportava uma maleta de violino. Talvez a criança fosse a um aula de música.
? É um violino, disse ele.
? Acho que sim, respondi.
? É uma criança com sorte, acrescentou.
? Deve ser, disse constrangida sem saber onde queria chegar.
Foi então que ele começou a falar, numa voz quase sem inflexão, num timbre grave, e distante, os olhos sempre pousados no canteiro em frente.
Contou-me como, na infância, sempre tinha desejado aprender a tocar violino, de como passava horas debaixo da janela de um senhor que tocava violino, a ouvi-lo ensaiar. O som do violino, disse ele, era como se chorasse em vez de mim. E eu só pensava que se eu pudesse tocar violino podia fazer sair uma tristeza que sentia e que não sabia bem o que era. Preferia aprender violino a andar na escola. Mas não podia ser. Nós nem vivíamos mal, embora com algumas dificuldades, dinheiro contado, como se dizia; além disso não era costume alguém ir estudar violino que, apesar de tudo, era um instrumento caro. Eu, sempre que podia, falava disso à minha mãe, de como queria ter um violino. Andava então na escola primária e devo dizer que não gostava lá muito da professora nem das intermináveis cópias que ela nos mandava fazer. Assim não trazia muitos bons resultados no caderno nem nas mensagens mandadas para casa. Um dia a minha mãe disse-me que ia ver se me arranjava um violino se eu me portasse melhor? E no dia dos meus anos ela apresentou-me a minha prenda. Eu vi que ela estava ansiosa que abrisse, e na expectativa. Peguei no embrulho e o meu coração saltou? era a forma de um violino. Abri-o, nervoso, rasgando o papel. Estava ali um violino, em plástico, azul, e cordas de arame. O arco vinha junto e quando tentei tocar fazia um miado quase sem som. A minha mãe, que devia ter feito alguns serões para juntar dinheiro para a minha prenda, perguntou-me baixinho se tinha gostado. Disse que sim abanando a cabeça. Então, com aquele objecto inútil nas mãos, que parecia estar a rir-se de mim e daquilo que eu tanto desejara, compreendi que tinham acabado de enterrar vivo aquele meu sonho. Toda a minha vida tenho enterrado sonhos vivos e penso que comecei com aquele violino que não chegou a ser, e olhava para mim cheio de troça? Quando terminou, não se moveu, continuou a olhar o jardim. Que pena, disse eu. Mas não me respondeu e só acenou ligeiramente quando me levantei e disse boa tarde. Regressei, a pensar como pode ser perigoso para um sonho e, mesmo um projecto, a mentira que, fingindo que é, pode impedir o acesso ao que deveria ser.

Angelina Carvalho